Nas cidades é onde tudo começa *
... Tamanho foi o sucesso do seu “Morte e Vida de Grandes Cidades” (1961) que a maioria das pessoas considera Jacobs uma autora de planejamento urbano. Mas ela foi muito mais do que isso. Ela aplicou a mesma mistura de questionamento rigoroso, imaginação e inteligência a questões mais amplas. Aquele que considero o seu melhor livro, “Cities and the Wealth of Nations” (1984), não foi outra coisa senão um confronto direto com a “Riqueza das Nações”, de Adam Smith.
Smith – ela argumentou – estava errado: as cidades, e não os países, são as fontes do desenvolvimento. Países são meramente “entidades políticas e militares”. Assim como “tentamos olhar para o mundo econômico real em si, em vez de enxergá-lo como um artefato dependente da política, não podemos deixar de ver que a maioria dos países é composta de coleções ou colchas de retalho [de regiões] econômicas muito diferentes”.
Acima de tudo, “tampouco podemos deixar de ver, também, que entre os vários tipos de economia, as cidades são singulares na sua capacidade de moldar e reformar as economias de outros povoados, mesmo os muito distantes delas geograficamente”. Cidades, não países, ela insistiu, são os elementos constituintes de uma economia em desenvolvimento e assim o foram desde o início da civilização. De acordo com Jacobs, as cidades desenvolvem-se através de uma explosiva substituição de importação. Esses novos produtos, por sua vez, transformam-se nas suas exportações, que financiam mais importações. A expansão que decorre da substituição de importação da cidade gera cinco fontes de crescimento: (1) mercados ampliados para importações crescentes; (2) número e tipo de postos de trabalho; (3) crescentes transplantes de obras urbanas com locações não-urbanas; (4) novos usos para tecnologia, particularmente para aumentar a produção rural e a produtividade; e (5) crescimento de capital pertencente à cidade para investir na própria cidade ou em outros lugares.
Jacobs também diferencia seis tipos de região: (1) regiões urbanas; (2) regiões de abastecimento; (3) regiões abandonadas; (4) regiões de despacho; (5) regiões de transplante; e (6) o mais desolador de todos os tipos, as regiões de subsistência. Sendo que moldando o destino dessas regiões estão as cidades.
As regiões urbanas tem as cidades no seu núcleo. Regiões de abastecimento , geralmente superespecializadas, fornecem alimento e matérias primas às cidades. Regiões abandonadas perdem população para as cidades em expansão. Regiões de despacho aplicam as tecnologias desenvolvidas pelas cidades para reduzir a mão-de-obra de que necessitam e geram poucos novos postos de trabalho para a mão-de-obra deslocada. Regiões de transplante importam de outras cidades aquelas fábricas e demais atividades que não necessitam o suporte de uma infra-estrutura densa. Finalmente, as regiões de subsistência que são praticamente acidentais.
Observe que todas essas definições são econômicas, não políticas. Hong Kong é o centro de uma região urbana que se estende até a China continental. O Uruguai é uma região de abastecimento, assim como a Arábia Saudita, Venezuela e –isso é deprimente- até a Rússia. Assim são também Alberta e Iowa. Os Estados mais ao sul dos EUA há muito são regiões de transplante. A Malásia de hoje também é, e também o foi a Rússia de Pedro, o Grande. A Appalachia é uma região uma região de subsistência, como a Etiópia.
Regiões periféricas – todas à exceção da primeira categoria – podem ser ricas, como o Kuait e Alberta, ou pobres, como Gana ou Mississipi. Ricos ou não, porém, eles são subdesenvolvidos: carecem da capacidade de improvisação auto-renovadora, que só as cidades comerciais possuem. Transplantes das cidades não conseguem remediar essa carência. Nem as remessas. Nem a riqueza advinda das commodities. Nem, menos ainda, a ajuda externa. Não existe desenvolvimento outorgado, sublinha Jacobs. O desenvolvimento precisa ser construído. Ele é um processo, não é uma coleção de bens de capital. Pensar de forma diversa significa tornar-se vítima de uma espécie de culto à carga.
Civilizações fracassam quando suas cidades fracassam. Uma idade das trevas ocorre quando seres humanos perdem o conhecimento que só residentes de cidades diferentes, com sua sofisticada divisão de trabalho interna, são capazes de desenvolver, usar e transmitir às novas gerações.
O que leva as cidades ao fracasso? Invasões que despedaçam as conexões de transporte é uma resposta óbvia, mas pouco útil. A resposta de Jacobs é mais interessante: a principal fonte de fracasso, ela sugere, é o que chama de “transações de decadência”.
Gastos militares, com bem estar social e redistribuição de renda são transações de decadência. O problema com esses pagamentos, afirma Jacobs, é que “se alimentando das receitas urbanas, como fazem, eles reduzem o comércio entre as cidades em favor de economias inertes. Os subsídios sugados das cidades são, por esses motivos, transações profundamente contrárias ao desenvolvimento”.
Transferências de renda compulsórias, em cidades produtivas, são fontes de estagnação econômica. Na plenitude do tempo, à medida que as demais cidades substituem as importações que costumavam usar para receber da cidade, agora ainda mais estagnada, a estagnação desta transforma-se em decadência inequívoca. Se todas as cidades comerciantes ligadas entre si começarem a decair, surgirá a ameaça do colapso de uma civilização. Longe de serem uma fonte de riqueza, os países, e até os impérios, tornam-se exterminadores de cidades.
Quanto mais gananciosos e centralizadores forem os seus governos, mais rapidamente eles destruirão o dinamismo das cidades sobre o qual se apóia a sua prosperidade. Isso, afirma Jacobs, explica porque os impérios fracassam. Isso explica porque a Holanda tornou-se mais rica do que a Espanha no século XVII, porque Hong Kong tornou-se mais próspera do que a China continental na segunda metade do século XX e porque Xangai só continuará mais rica do que o resto da China se o governo lhe permitir reter a maior parte da renda que gera.
A aglomeração ainda é necessária nessa era de comunicação de baixo custo? A evidência indica que sim. O Vale do Silício é uma região urbana dinâmica. De todas as atividades, a financeira pareceria ser a mais facilmente dispersa. Em vez disso, as atividades financeiras estão concentradas em número cada vez menor de cidades. Nem todas as aglomerações de seres humanos são economicamente proveitosas. Mas todas as regiões economicamente mais proveitosas ainda são concentrações de pessoas que chamamos de cidades.
Jacobs não pertenceu à esquerda anti-mercado nem à direita do livre mercado. Ela estimulou estes últimos ao enfatizar a futilidade dos subsídios, do assistencialismo e do planejamento do desenvolvimento. Assim como estimulou os primeiros ao apoiar a “proteção inversa à cidade” e realçar os perigos da especialização excessiva. Ela chamou a atenção para a improvisação espontânea como sendo o pilar do avanço econômico, porém ressaltou que as cidades eram o único local para aquela improvisação.
“Quando um homem está cansado de Londres, está cansado da vida; pois em Londres há de tudo o que a vida pode oferecer”, ponderou o escritor do século XVIII, Samuel Johnson. Jacobs afirmou que Johnson estava mais certo do que ele supunha. Esqueça países e mais ainda a zona rural. Mire as cidades , em vez disso. Elas são, como sempre foram, as turbinas do progresso humano.
* Por Martin Wolf, editorialista e principal comentarista econômico do jornal inglês Financial Times. Matéria publicada no início de maio/2006, no OESP